segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O homem sem rosto




Um dia conheci um homem sem rosto. A principio não notei ou, na verdade, demorei para perceber. Descobri essa figura numa foto. Quem era aquela pessoa que estava ali no meio de tanta gente e ninguém conhecia? Olhei em outros retratos e ele sempre estava lá. Era um fantasma? Não, não acredito nessas coisas, só em fantasmas reais, coisas da vida.
Outro dia vi de relance, passando por mim. Depois disso nunca mais soube, não vi nem em foto nem por aí. Mas, ainda continuo com aquela impressão, de que ele deve ser muito sozinho... Lembro dele deslocado, sem falar com ninguém, perdido no meio da multidão. Ele estava ou não estava lá? Agora tanto faz, assim como pensei nele também vou esquecer, mais rápido do que imagino, como é a força do pensamento. Uma pena, ele não se fez notar.



O homem sem rosto II

O rosto se apagou
no meio da multidão
feito uma lâmpada queimada.
Uma pena.
Parecia que ele não estava lá.
O homem sem rosto... 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Num retrato qualquer

Te guardei numa gaveta.
Lá dentro, quase escondido...
Pra que nem o tempo possa achar,
No silêncio de uma foto qualquer,

Que a vida não pode apagar.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O casaco de lã azul



Hoje acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Levantei da cama e calcei meus chinelos para não pisar no chão gelado de inverno. Mesmo assim, faz calor nos trópicos. Segui para a cozinha e coloquei para ferver a água do café. Enquanto o cheiro se espalhava, diluindo a fumaça pelo ar, olhei para o lado e lembrei que você não estava lá. Vesti o casado de lã azul como se recebesse um abraço. E eu sei, o quanto você gostava dele. Com uma xícara cheia de café amargo sentei perto da janela e não quis ler o jornal. Nenhuma noticia do mundo ia me fazer pensar em outra coisa agora. O ser humano pode ser um bicho bem egoísta. Então, fiquei ali parada, olhando a janela, enquanto o sol ainda não tinha saído. De repente pingos de chuva começaram a bater no vidro da janela, entrando pela aresta aberta. Acho que nem o céu queria me deixar sozinha neste momento. Me encolhi feito um bichinho e fiquei reparando a chuva cair, no silêncio da manhã. O silêncio despertava em mim uma paz, uma sensação de que tudo ia se ajeitar. E quanto mais ficava ali, mais era essa certeza de bem estar. Não queria acordar.
O relógio marcou mais um minuto no ponteiro. Dei um gole cheio no café como se ele fosse me dar forças para seguir. Seguir com o quê? Nem eu sabia. E com os pés descalços caminhei em direção ao banheiro, me despindo pelo caminho, até chegar em frente ao espelho e me ver por completo. Parei e comecei a reparar, todos os detalhes do meu corpo nu. Cheguei numa decisão de que me amava do jeito que era. Por inteira. Cada perfeição, cada defeito, mesmo as pequenas cicatrizes. Observei-me por alguns minutos sem máscaras. Apenas eu. E me senti leve.
Entrei no chuveiro quente. Não sentia mais a sua falta por não estar lá. Eu me bastava, mas, é que o ser humano não nasceu para ficar sozinho. E com água escorrendo pelo corpo, era ideia de que a tristeza ia embora junto dela. Dias melhores sempre virão.
Hoje eu acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim, dentro de mim. Tudo foi igual, nada diferente. Pisei com os pés descalços no gelado chão, o inverno é cruel fora dos trópicos. Lá fora não tinha sol, e os flocos de neve caiam evocando um silêncio profundo em toda a cidade. Não havia passarinhos e nem abelhas do lado de fora da janela. Hoje não haveria sol, eu sei.
Levantei e peguei o jornal. Enquanto bebia um chá lia as terríveis noticias sobre terroristas muçulmanos radicais. Achava tão estranho, fora da minha realidade. Liguei o rádio para ouvir qualquer voz estranha em que pudesse confiar. Estava com preguiça de sair para ver o mundo, tanto trabalho, tanta coisa pra fazer. Queria ficar em casa o dia inteiro pensando em besteira, imaginando coisas, vendo filmes tolos que não me fizessem pensar.
Mas, infelizmente, o ponteiro marca um minuto atrás do outro e o relógio não espera por ninguém. Às vezes da ódio da vida. “Alice não pode se atrasar!” Abri o chuveiro e me joguei dentro, água que lava, água que renova. É estranha essa ligação que só quem é dos trópicos entende. “Água que renova”. 
Hoje acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim, dentro de mim. Levantei da cama e com os pés descalços pisei no chão fresco. Era primavera nos trópicos, a melhor fase do ano. Havia passarinhos cantando lá fora. Segui para cozinha e o café estava lá. Um beijo com sabor de café. Hoje não posso me atrasar. Sentei perto da janela e você abriu um sorriso e me abraçou. Ficamos ali alguns minutos ouvindo a vida lá fora tomar forma. Fomos interrompidos pelo barulho da torrada saltando da torradeira. Interrompeu nosso pequeno momento eternizado. Ponteiro, será que poderia parar por alguns instantes? Preciso fotografar esta cena. Você levantou, pegou as torradas e totalmente desajeitado passou manteiga no pão, que pra sua desgraça caiu no chão. Mas, claro, você pegou e comeu mesmo assim.  Rimos. Sentei para ler o jornal e não consegui. Com um sorriso trincado no rosto corri para o banheiro. Com a TV ligada, o jornal matinal falava sobre aquele avião que caiu. Ouvi de longe e encostei a porta. Porque às vezes a gente está tão feliz quando têm tanta gente triste? Droga! Tenho que sair! Me enfiei bem confortável debaixo d’água quente, você entrou e me fez sorrir.
 Hoje acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Levantei da cama e com os pés descalços pisei no chão. Senti um arrepio na espinha. O dia estava cinzento lá fora e ainda estava escuro na cidade. Para algumas pessoas era hora de acordar, e, para outras, de dormir. Era outono nos trópicos, mas estava calor. O outono não é tão bonito aqui como lá. Caminhei e fui ver o neném que dormia silenciosamente. Seus pezinhos bem cobertos faziam todo o sentido naquele silêncio. Sentei próxima a janela, ao lado do berço, e vi os primeiros raios de sol da manhã brilhando em você. Como pode uma coisa tão linda ser criada entre a relação de dois. Pensei num triangulo perfeito. Serzinho meu, mágico. De longe um tossido ecoou pela escuridão da casa. Era bom ouvir esse som. O silêncio das pessoas amadas. De vez em quando a vida faz sentido. E fiquei ali, parada, encolhida no canto, em paz. De repente o despertador tocou. Queria mais um tempo para curtir o silêncio da casa, sozinha. Às vezes o ser humano é um bicho meio egoísta. Ele acordou, seguiu pra cozinha, me procurando pela casa. Quis me esconder só para ele me achar. Um beijo na escuridão. Devagar, alisando as paredes com as pontas dos dedos caminhei ao banheiro, liguei o chuveiro, relaxei minha cabeça sob a água. O neném começou a chorar...
Hoje acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Ela pulou sobre mim reclamando do irmão e eu a agarrei contra o peito para cheirar seu cabelo. Ficamos ali até que ele começou a gritar. Levantei da cama com os pés descalços no chão fresco. Era verão nos trópicos. E como o ar refrigerado da casa estava quebrado, as crianças acordavam cedo e impacientes. Coloquei a água do café, ele sentou em frente à televisão para ver um desenho e ela contava os sonhos da boneca preferida. O pai não ligou? Perguntou. Fingi que não ouvi e servi o leite com cereais coloridos que eles tanto gostavam. Cara de um, focinho do outro. Peguei o jornal e sentei na poltrona próxima a janela. A cotação do dólar estava em alta. Não haveria viagens extravagantes este ano.
Quando de repente os dois me surpreenderam com um abraço. E ficamos os três ali, abraçados, no calor do verão dos trópicos, ao som de alguma musica de desenho animado, e de algumas buzinas de trânsito que começavam a acordar lá fora. Percebi que éramos um triângulo perfeito e comecei a chorar. O menor beijava as minhas lágrimas enquanto a mais velha fazia cócegas em mim. Começamos a rir. O tic tac do relógio se confundia com o tum tum tum do meu coração. Era o tempo pulsando em minhas veias.
Levantei e falei animada: Vamos à praia! Eles começaram a pular. Só preciso de uma chuveirada. Segui ao banheiro. Tirei as roupas, calmamente. Há muito tempo não me via. Comecei a reparar, todos os detalhes do meu corpo nu. Cheguei numa decisão de que me amava do jeito que era, por inteira. Cada perfeição, cada defeito, mesmo as pequenas cicatrizes. Observei-me por alguns minutos sem máscaras. Apenas eu. E me senti leve. Entrei na ducha quente e comecei a chorar, não de tristeza. Eu não estava sozinha.
Hoje eu acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim, dentro de mim. Tudo foi igual, nada diferente. Pisei com os pés descalços no gelado chão, o inverno é cruel fora dos trópicos. Os flocos de neve caiam evocando um silêncio profundo em toda a cidade. Não havia passarinhos e nem abelhas do lado de fora da janela. Hoje não haveria sol, eu sei. Coloquei o pó de café dentro da cafeteira e peguei o jornal. Enquanto a fumaça se espalha pelo ar o aroma do café, liguei o rádio e começou a tocar “Lomesone Town”, de Ricky Nelson. Encostei a cabeça no encosto da cadeira e parei pra olhar a neve branca lá fora. Era um lindo dia de inverno. Reparei que já estava atrasada. O relógio nunca espera. Resolvi não ligar e aproveitar mais um pouco daquele momento.  E quando relaxei lembrei que minha filha devia estar se divertindo nos trópicos. Imaginei como seria bom um mergulho no mar e que talvez precisasse de férias. Servi o café e sentei próxima a janela. Esticando os pés sobre o parapeito. Por um momento um filme de minha vida passou, me deixando aterrorizada. Não era mais jovem, não tinha mais tempo para concertar tantas coisas. Poderia pegar qualquer doença, descobrir um câncer. Meus filhos não precisavam mais de mim, a não ser para pagar as contas, mas isso seria apenas uma questão de tempo. Eram jovens talentosos, dariam conta de si. De repente uma tristeza profunda ecoou no peito. Voltei a ser um indivíduo solitário. Uma mulher independente. Seria triste? Não precisar fazer nada por ninguém e ninguém fazer por mim? Meus laços são com a minha pequena família, minha prole, a não ser por amigos e um gato no qual o porteiro alimenta. Preciso voltar para os trópicos. Lá é calor e o sol aquece a alma. O inverno por mais bonito que seja pode ser infernal. Inverno rima com inferno, isso sempre me deu medo. Levanta os piores pensamentos que alguém pode ter.  Dei um gole no café como quem busca forças para continuar. Continuar com o que? Nem eu sabia. Mas segui para o banheiro, e sem me ver no espelho tirei a roupa e entrei na água quente. Água que lava, água que acalma. E com a água escorrendo pelo corpo, era ideia de que a tristeza ia embora junto dela.
Hoje eu acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim, dentro de mim. Tudo poderia ter sido igual, mas foi diferente. O sol não tinha brilhado ainda, era verão nos trópicos. Nessa época o sol nasce mais tarde. Dessa vez me faltou força para levantar e fazer o café. Fiquei parada, estática na cama, no silêncio. Um sentimento de paz me tomou. Vi meus filhos crescerem por um minuto. Vi meus amores, meus amigos, até aquele jovem rapaz que roubou meu coração num beijo em baixo da chuva nos meus quinze anos. Vi minha mãe cozinhando para a família no natal. Meu pai abriu os braços e me deu um abraço. Há quanto anos eu não pensava nele, nem lembrava sua voz. Eu vi os flocos de neve cair pela primeira vez e mudar a minha vida. Meu corpo relaxou na cama, e não sentia mais nenhuma dor. Virei para o lado e resolvi dormir mais um pouco, num último suspiro de verão.





sexta-feira, 17 de maio de 2013

Uma homenagem a minha caravela


Me joguei no mar numa caravela. Se era um sonho não sei, mas parecia real. As ondas estavam fortes e batiam sobre o barco, mexendo, puxando, me enfrentando. Ri de nervoso para não chorar. Chorar às vezes dá vergonha, coisa de fraco. Limpei a face com a camisa e vi sangue, meu rosto estava todo coberto por ele. Limpei novamente e nada estava lá. Mais uma viagem. Segui em meio à tempestade que se formava sobre a minha cabeça. O negro céu me fazia rir de tanto medo, era a minha única reação. Eu era uma pedra de gelo por dentro. Parecia um bêbado com o corpo sendo jogado de um lado ao outro. É uma merda perder o domínio de si. Cantei alguma coisa que não consegui ouvir, queria afastar os maus espíritos de perto de mim. Cantei pra jogar a minha alma pra boca. Eu sei que ela estava lá, em algum lugar. Mais uma onda bateu contra o barco, dessa vez ela me arremessou ao chão. Bati contra as costas no mastro. Foi o tempo de segurar na corda. Fiquei ali preso, não queria mais levantar. “Por favor tempestade, passa!” - Pensei em oração. A vontade era “termina logo com isso, me deixa morrer”. Mas não passava, não passava, continuava ali, me fazendo mal, me fazendo sofrer. Depois de ter vomitado, de estar todo molhado, com frio, tonto e o corpo dolorido, eu sabia que ia morrer. Só que dessa vez não estava mais desejando isso. Em algum momento percebi que em alguma hora isso ia passar. Me agarrei na corda e a prendi contra a cintura. O pior é que não tinha muito o que fazer a não ser sobreviver a tempestade. Sobreviver, sobreviver, sobreviver cansa. Onda após onda. Medo contra medo sendo lançado sobre mim. Dessa vez limpei o rosto com as mãos tremulas, sei que tinha sangue. Eu tinha batido a cabeça em algum lugar. E o barco continuava lá, resistindo. Para mim passaram-se anos até que percebi o céu aberto. Nunca havia visto um céu tão estrelado como aquele, parecia sorrir pra mim. E eu pensei “filhos da puta”.   

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O voo do coleirinho


Todo dia ele acordava cedo e esquentava a água do café. E do canto da sala tirava uma gaiola com um coleirinho. Caminhava até a varanda, onde pendurava a gaiola no alto, num cantinho banhado pelos primeiros raios de sol da manhã. O coleirinho, um pássaro bem pequenino e delicado, começava a cantar. Batendo as asas, parecia feliz. Daí, os dois assobiavam juntos como se numa conversa de velhos amigos. O homem começava, o pássaro respondia e vice-versa. Ficavam assim por um tempo. Nas manhãs de chuva, o homem escolhia outro canto da varanda, num local mais confortável para o amiguinho de asas. E numa rotina metódica, guardava a gaiola dentro de casa assim que voltava do trabalho.

Foi assim por anos, até que os dois envelheceram. E, olha que no meio desse caminho muitas coisas aconteceram. O tempo sempre muda alguma coisinha mínima que seja. Mas, os dois continuavam juntos, até que um dia o homem adoeceu e como quem faz uma viagem longa, partiu. A primeira pessoa que sentiu, é claro, foi o coleirinho. Ninguém mais ligava pra ele, ele perdera o seu grande amigo e companheiro. Passou um tempo e ele, entristecido, parou de cantar. Só ficava quietinho no canto dele. Foi assim, por pouco tempo...

Até que numa manhã de chuva o coleirinho se encolheu no seu cantinho e dormiu...
Até que numa manhã de sol, o vento derrubou a gaiola, abrindo sua porteirazinha e o passarinho bateu asas e voou, voou pra longe, pra longe do frio, longe do silêncio, e foi cantar em algum lugar, junto daquele velho amigo.