Hoje
acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Levantei da
cama e calcei meus chinelos para não pisar no chão gelado de inverno. Mesmo
assim, faz calor nos trópicos. Segui para a cozinha e coloquei para ferver a
água do café. Enquanto o cheiro se espalhava, diluindo a fumaça pelo ar, olhei
para o lado e lembrei que você não estava lá. Vesti o casado de lã azul como se
recebesse um abraço. E eu sei, o quanto você gostava dele. Com uma xícara cheia
de café amargo sentei perto da janela e não quis ler o jornal. Nenhuma noticia
do mundo ia me fazer pensar em outra coisa agora. O ser humano pode ser um
bicho bem egoísta. Então, fiquei ali parada, olhando a janela, enquanto o sol
ainda não tinha saído. De repente pingos de chuva começaram a bater no vidro da
janela, entrando pela aresta aberta. Acho que nem o céu queria me deixar
sozinha neste momento. Me encolhi feito um bichinho e fiquei reparando a chuva
cair, no silêncio da manhã. O silêncio despertava em mim uma paz, uma sensação
de que tudo ia se ajeitar. E quanto mais ficava ali, mais era essa certeza de
bem estar. Não queria acordar.
O
relógio marcou mais um minuto no ponteiro. Dei um gole cheio no café como se
ele fosse me dar forças para seguir. Seguir com o quê? Nem eu sabia. E com os
pés descalços caminhei em direção ao banheiro, me despindo pelo caminho, até chegar
em frente ao espelho e me ver por completo. Parei e comecei a reparar, todos os
detalhes do meu corpo nu. Cheguei numa decisão de que me amava do jeito que
era. Por inteira. Cada perfeição, cada defeito, mesmo as pequenas cicatrizes. Observei-me
por alguns minutos sem máscaras. Apenas eu. E me senti leve.
Entrei
no chuveiro quente. Não sentia mais a sua falta por não estar lá. Eu me
bastava, mas, é que o ser humano não nasceu para ficar sozinho. E com água
escorrendo pelo corpo, era ideia de que a tristeza ia embora junto dela. Dias
melhores sempre virão.
Hoje
eu acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim, dentro
de mim. Tudo foi igual, nada diferente. Pisei com os pés descalços no gelado
chão, o inverno é cruel fora dos trópicos. Lá fora não tinha sol, e os flocos
de neve caiam evocando um silêncio profundo em toda a cidade. Não havia passarinhos
e nem abelhas do lado de fora da janela. Hoje não haveria sol, eu sei.
Levantei
e peguei o jornal. Enquanto bebia um chá lia as terríveis noticias sobre
terroristas muçulmanos radicais. Achava tão estranho, fora da minha realidade.
Liguei o rádio para ouvir qualquer voz estranha em que pudesse confiar. Estava
com preguiça de sair para ver o mundo, tanto trabalho, tanta coisa pra fazer.
Queria ficar em casa o dia inteiro pensando em besteira, imaginando coisas,
vendo filmes tolos que não me fizessem pensar.
Mas,
infelizmente, o ponteiro marca um minuto atrás do outro e o relógio não espera
por ninguém. Às vezes da ódio da vida. “Alice não pode se atrasar!” Abri o
chuveiro e me joguei dentro, água que lava, água que renova. É estranha essa
ligação que só quem é dos trópicos entende. “Água que renova”.
Hoje
acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim,
dentro de mim. Levantei da cama e com os pés descalços pisei no chão fresco.
Era primavera nos trópicos, a melhor fase do ano. Havia passarinhos cantando lá
fora. Segui para cozinha e o café estava lá. Um beijo com sabor de café. Hoje
não posso me atrasar. Sentei perto da janela e você abriu um sorriso e me
abraçou. Ficamos ali alguns minutos ouvindo a vida lá fora tomar forma. Fomos
interrompidos pelo barulho da torrada saltando da torradeira. Interrompeu nosso
pequeno momento eternizado. Ponteiro, será que poderia parar por alguns
instantes? Preciso fotografar esta cena. Você levantou, pegou as torradas e
totalmente desajeitado passou manteiga no pão, que pra sua desgraça caiu no
chão. Mas, claro, você pegou e comeu mesmo assim. Rimos. Sentei para ler o jornal e não
consegui. Com um sorriso trincado no rosto corri para o banheiro. Com a TV
ligada, o jornal matinal falava sobre aquele avião que caiu. Ouvi de longe e
encostei a porta. Porque às vezes a gente está tão feliz quando têm tanta gente
triste? Droga! Tenho que sair! Me enfiei bem confortável debaixo d’água quente,
você entrou e me fez sorrir.
Hoje acordei com uma sensação estranha de que
o sol brilhava para mim. Levantei da cama e com os pés descalços pisei no chão.
Senti um arrepio na espinha. O dia estava cinzento lá fora e ainda estava
escuro na cidade. Para algumas pessoas era hora de acordar, e, para outras, de
dormir. Era outono nos trópicos, mas estava calor. O outono não é tão bonito
aqui como lá. Caminhei e fui ver o neném que dormia silenciosamente. Seus
pezinhos bem cobertos faziam todo o sentido naquele silêncio. Sentei próxima a
janela, ao lado do berço, e vi os primeiros raios de sol da manhã brilhando em
você. Como pode uma coisa tão linda ser criada entre a relação de dois. Pensei
num triangulo perfeito. Serzinho meu, mágico. De longe um tossido ecoou pela
escuridão da casa. Era bom ouvir esse som. O silêncio das pessoas amadas. De
vez em quando a vida faz sentido. E fiquei ali, parada, encolhida no canto, em
paz. De repente o despertador tocou. Queria mais um tempo para curtir o
silêncio da casa, sozinha. Às vezes o ser humano é um bicho meio egoísta. Ele
acordou, seguiu pra cozinha, me procurando pela casa. Quis me esconder só para
ele me achar. Um beijo na escuridão. Devagar, alisando as paredes com as pontas
dos dedos caminhei ao banheiro, liguei o chuveiro, relaxei minha cabeça sob a
água. O neném começou a chorar...
Hoje
acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Ela pulou
sobre mim reclamando do irmão e eu a agarrei contra o peito para cheirar seu
cabelo. Ficamos ali até que ele começou a gritar. Levantei da cama com os pés
descalços no chão fresco. Era verão nos trópicos. E como o ar refrigerado da
casa estava quebrado, as crianças acordavam cedo e impacientes. Coloquei a água
do café, ele sentou em frente à televisão para ver um desenho e ela contava os
sonhos da boneca preferida. O pai não ligou? Perguntou. Fingi que não ouvi e
servi o leite com cereais coloridos que eles tanto gostavam. Cara de um,
focinho do outro. Peguei o jornal e sentei na poltrona próxima a janela. A
cotação do dólar estava em alta. Não haveria viagens extravagantes este ano.
Quando
de repente os dois me surpreenderam com um abraço. E ficamos os três ali,
abraçados, no calor do verão dos trópicos, ao som de alguma musica de desenho
animado, e de algumas buzinas de trânsito que começavam a acordar lá fora.
Percebi que éramos um triângulo perfeito e comecei a chorar. O menor beijava as
minhas lágrimas enquanto a mais velha fazia cócegas em mim. Começamos a rir. O
tic tac do relógio se confundia com o tum tum tum do meu coração. Era o tempo
pulsando em minhas veias.
Levantei
e falei animada: Vamos à praia! Eles começaram a pular. Só preciso de uma
chuveirada. Segui ao banheiro. Tirei as roupas, calmamente. Há muito tempo não
me via. Comecei a reparar, todos os detalhes do meu corpo nu. Cheguei numa
decisão de que me amava do jeito que era, por inteira. Cada perfeição, cada
defeito, mesmo as pequenas cicatrizes. Observei-me por alguns minutos sem
máscaras. Apenas eu. E me senti leve. Entrei na ducha quente e comecei a
chorar, não de tristeza. Eu não estava sozinha.
Hoje
eu acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim,
dentro de mim. Tudo foi igual, nada diferente. Pisei com os pés descalços no
gelado chão, o inverno é cruel fora dos trópicos. Os flocos de neve caiam
evocando um silêncio profundo em toda a cidade. Não havia passarinhos e nem
abelhas do lado de fora da janela. Hoje não haveria sol, eu sei. Coloquei o pó
de café dentro da cafeteira e peguei o jornal. Enquanto a fumaça se espalha
pelo ar o aroma do café, liguei o rádio e começou a tocar “Lomesone Town”, de
Ricky Nelson. Encostei a cabeça no encosto da cadeira e parei pra olhar a neve
branca lá fora. Era um lindo dia de inverno. Reparei que já estava atrasada. O
relógio nunca espera. Resolvi não ligar e aproveitar mais um pouco daquele
momento. E quando relaxei lembrei que
minha filha devia estar se divertindo nos trópicos. Imaginei como seria bom um
mergulho no mar e que talvez precisasse de férias. Servi o café e sentei
próxima a janela. Esticando os pés sobre o parapeito. Por um momento um filme
de minha vida passou, me deixando aterrorizada. Não era mais jovem, não tinha
mais tempo para concertar tantas coisas. Poderia pegar qualquer doença,
descobrir um câncer. Meus filhos não precisavam mais de mim, a não ser para
pagar as contas, mas isso seria apenas uma questão de tempo. Eram jovens
talentosos, dariam conta de si. De repente uma tristeza profunda ecoou no
peito. Voltei a ser um indivíduo solitário. Uma mulher independente. Seria
triste? Não precisar fazer nada por ninguém e ninguém fazer por mim? Meus laços
são com a minha pequena família, minha prole, a não ser por amigos e um gato no
qual o porteiro alimenta. Preciso voltar para os trópicos. Lá é calor e o sol
aquece a alma. O inverno por mais bonito que seja pode ser infernal. Inverno
rima com inferno, isso sempre me deu medo. Levanta os piores pensamentos que
alguém pode ter. Dei um gole no café
como quem busca forças para continuar. Continuar com o que? Nem eu sabia. Mas
segui para o banheiro, e sem me ver no espelho tirei a roupa e entrei na água
quente. Água que lava, água que acalma. E com a água escorrendo pelo corpo, era
ideia de que a tristeza ia embora junto dela.
Hoje
eu acordei com uma sensação estranha de que o sol brilhava para mim. Em mim,
dentro de mim. Tudo poderia ter sido igual, mas foi diferente. O sol não tinha
brilhado ainda, era verão nos trópicos. Nessa época o sol nasce mais tarde.
Dessa vez me faltou força para levantar e fazer o café. Fiquei parada, estática
na cama, no silêncio. Um sentimento de paz me tomou. Vi meus filhos crescerem
por um minuto. Vi meus amores, meus amigos, até aquele jovem rapaz que roubou
meu coração num beijo em baixo da chuva nos meus quinze anos. Vi minha mãe
cozinhando para a família no natal. Meu pai abriu os braços e me deu um abraço.
Há quanto anos eu não pensava nele, nem lembrava sua voz. Eu vi os flocos de neve
cair pela primeira vez e mudar a minha vida. Meu corpo relaxou na cama, e não
sentia mais nenhuma dor. Virei para o lado e resolvi dormir mais um pouco, num
último suspiro de verão.