quinta-feira, 17 de junho de 2010

A mulher de vermelho - parte I

Você me tinha, não me queria e não fez nada para me ter. Você me tinha. Não me queria. Não fez nada para me ter. Você me tinha e não me queria, não fez nada para me ter. Ela pensava nisso sem parar enquanto se arrumava. Ajeitava o cabelo castanho dourado cumprido. Enrolava o cabelo em um coque enquanto fazia pose para o espelho. A boca suavemente fazia um bico. Se enamorava de rabo de olho fazendo uma cara séria e sexy, como quem não quer nada. Tirou o ropão florido de seda e colocou seu vestido vermelho de bolinhas, decotado, mas não curto. O seu apartamento, um conjugado de paredes brancas enfeitado por posteres de Klimt e Mirró. Móveis e objetos coloridos, marcado por sofás e almofadas vermelhas parecidos com endredom da cama. A vista da janela dava para a montanha. Seu guarda roupa enorme e bagunçado demonstrava ainda mais seu gosto pela cor vermelha. Eram casacos, sapatos, bolsas, vestidos e saias. Menos as calcinhas e sutiãs que pareciam na gaveta aberta, todos muito coloridos, floridos e brancos.



Calçou seu sapato favorito, que parecia uma sapatilha alta de sapateado na cor vermelha, é claro. Olhou a janela, viu que o tempo estava meio ruim. Pegou o guardo chuva preto de bolinhas brancas e a bolsa italiana marrom de couro, fez um carinho na cabeça do gato que se chamava Gato e bateu a porta.



A mulher parecia ter saído de um filme de Felline, toda de vermelho, cabelo arrumado. Era praticamente uma atriz italiana com grandes lábios pintados de batom vermelho. Ela pensava em si como um personagem, vivia a vida como se interpretasse um filme, e como se idealizava... Cantarolava baixinho uma de suas músicas preferidas, Carmen por Maria Callas, que também era uma musa inspiradora. Andava devagar na rua quase vazia, ninguém se dava conta da cena mágica que ela estava vivendo. Andava como se fosse observada, em algum lugar haveria uma câmera? Cantava sua música, sua trilha sonora, como se esta dissesse muito a seu respeito. Jogava charme para o ar e ria. Olhava para o nada, paquerando o vazio. A chuva começou a cair, passou a apressar os passos. Enquanto caminhava mais rápido, mais rápidos caiam os pingos. O barulho aumentava e ela aumentava sua música. Adorava a chuva, achava sexy.



Pegou um ônibus, sentou no acento alto perto da porta de saída. Continuava a cantarolar mais baixo e se enamorava de si mesma pelo reflexo da janela. Um homem sentou perto. Ele era bem vestido, magro, alto, tinha um certo charme. ficou olhando perplexo para ela. Ela achava que ele olhava sua beleza poética. Ele achava que ela era um tanto estranha.



A chuva continuava quando chegou ao local de destino. Era a faculdade aonde dava aula sobre a mulher na literatura da America Latina. Sua autora preferida era Clarice lispector, no entanto, também gostava de argumentar sobre personagens famosos como Capitu, a menina dos olhos de ressaca e Remédios a bela, entre outras. Discutia a fundo, entretanto, fugia da filosofia porque acreditava que esta iria levá-la a psicologia e no momento de sua vida, por mais inconsciente que fosse, não queria saber de análise.



Na aula eram poucos alunos, na maioria mulheres. Gostava era dos poucos rapazes que ali estavam, os enchia de atenção. Pedro, Antonio, Guilherme Augusto e Fernando. Sempre sabia o nome dos garotos, adorava saber deles, eram público para o seu charme. Fernando era o mais bonito. Ela o adorava. As meninas pareciam sentir inveja da jovem professora. Ao menos, é o que pensava. Mas a professorinha era um tanto quanto excêntrica, as vezes parecia falar sozinha. Durante a aula uma jovem aluna prodigia sempre fazia críticas as suas opiniões, mas ela se fazia de desentendida e a ignorava, respondia o que lhe era conveniente. No fundo dava aula só para falar o que pensava para o mundo. Não estava muito interessada em entrosamentos, por mais intelectuais que fossem, ela se bastava e o melhor, confia na sua própria opinião. Era absoluta.


Gostava do status de erudita que um professor pode ter. Dar aulas pagava as contas, além de realizá-la profissionalmente. Adorava os filosofos gregos, amava Nietzsche. Tinha como seu dilema "usufruir a vida para não ser usufruído por esta". Acreditava que o seguia à risca. Mesmo assim, desejava uma história de amor como as de Jane Austen, as suas novelas preferidas, já que não assistia TV. No entanto, era tão solitária, fingia que não. Voltava para casa depois da aula, dava ração ao Gato, não dava papo para ninguém que fosse, talvez não conseguisse. As vezes, quando estava de bom humor, conversava com o porteiro sobre as noticias de politica e assassinatos que lia no jornal. Neste dia em especial, abriu um vinhor e citou poemas de Florbela Espanca. "E acabada a tarefa, em paz contente,/ um dia adormecer serenamente, / como dorme no berço uma criança!" Adormeceu sobre o sofá da sala ouvindo The four seasons de Vivaldi e sonhou.

"Estava em um rio que corria doce, parecia um véu, até que passou a correr em várias direções. Do outro lado estava ele, olhando pra mim. me gritava estendia a mão. Eu gritava, vestia um vestido vermelho longo. Eu dizia que tinha medo, não queria atravessar o rio. Ele falava para confiar nele mas eu não conseguia. Passaram várias crianças correndo, sem medo, atravessaram o rio, eu pedi pra elas não irem. Cuidado crianças! Elas foram, não me ouviram e eu não. Ele cansou de me esperar. Derrepente apareceu outra mulher que estendeu a mão e ele segurou. Os dois foram saindo e eu me desesperei, corri pra atravessar o rio, mas a água me engoliu."

Ela acordou aos gritos e começou a chorar.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O cara

Lá estava ele, sentado na janela fumando sem parar. Um cigarro atrás do outro da sua marca favorita, Malborão. Estava aflito como há muito tempo não ficava. Faltava algo. A vista dava para o Cristo, mas não dava para ver o redentor porque estava em obras. Lá em baixo uma feira acontecia como todos os sábados de manhã. Apesar do barulho e do cheiro ruim de peixe, ele gostava. Achava feira uma coisa fotogênica, colorida, bonita de se ver. Do outro lado a Lagoa, que aparecia por uma fresta na janela no outro canto da sala, onde haviam prédios altos, que impossibilitava um melhor ângulo. Sou um cara de sorte! - Ele pensava. No entanto, aquele vazio continuava a perturbá-lo. Resolveu sair, afinal era sábado. Foi dar um rolé de skate, que não andava fazia tempos. Era engenheiro, trabalhava numa empreitera famosa, detestava o trabalho. Ganhava dinheiro. Escolheu Engenharia Elétrica, nem sabia o motivo. No tempo livre tocava baixo.
Botou o i pod no shuffle. Nossa, Planet Hemp soltando a fumaça no ar, caralho que saudade de ser muleke, zuar com os amigos, beber cachaça na Lapa, zuar as mulé, beber até cair, ir no show dos Raimundos. Porra, que saudade! - O cara estava todo melancólico.
Mas as coisas haviam mudado há tanto tempo. Tudo começou quando o Julinho morreu, ele era o melhor amigo de infância e de tudo. Os dois perderam a virgindade juntos, no mesmo puteiro. Os dois tomaram o primeiro porre juntos, o primeiro baseado, a primeira briga que bateram e que apanharam, os dois juntaram dinheiro juntos para comprar um Opalão, porque eles se achavam os caras. Pena que o carro durou pouco. Obviamente eles deram com Opalão num poste e a mãe do Julinho deu um ataque, obrigando-os a vendê-lo. Porém, mesmo eles tendo economizado a grana, deixando de sair e de fazer mil coisas durante um ano inteiro, o pouco tempo de vida do Opalão foi foda. Inesquecível.
Ele corria pela a Jardim Botânico, não sabia direito para onde ia, mas gostava do cheiro de mato molhado. Havia chovido de manhã. Eram só lembranças e a música que estimulavam seu corpo a correr como um louco. Parecia não ter medo de morte, correndo daquele jeito. Só que não era isso, ele já sabia que as pessoas morrem quando tem que morrer. O Julinho, foi o primeiro a acalmar, até casou. Parou com tudo antes da rapaziada, que também parou, mesmo que só tenha conseguido isso depois de ter sido internado numa clínica de reabilitação. Morreu cedo, leucemia. Porra, o cara não merecia! - Ficava arrasado pensando no amigo. Conversava com ele em pensamento.
Seu último namoro não tinha sido há muito tempo. No começo ela era demais, a mulher da sua vida. Mas ao longo de alguns poucos anos as coisas mudaram, ela não queria ele como ele era. Ela mesmo não curtia as coisas boas e simples da vida. Ele, obviamente, com uma personalidade forte, não gostava. Até porque ele era um cara muito legal e sabia disso. Mesmo assim, depois dela, ele não conseguiu achar ninguém. Até pensava em casamento, mas com quem? Queria ter filhos, ensinar a jogar bola, fazer albúm de futebol. Por enquanto era apenas um sonho.
Ele não usava mais droga alguma, só cigarros e as vezes topava uma aventura etílica. Era um cara bonito, mas atraia mulheres vazias, ou pelo menos não a certa.
Chegou na orla da praia, já era tarde, o tempo estava nublado, mas a pouca luz que refletia na água brilhava verde no mar. A praia, inacreditavelmente estava vazia. Nossa, que lindo! - contemplava. E quando acendeu mais um cigarro, enquanto andava com o skate na mão, com a camisa de botão aberta, lembrando de um conto de Allan Poe que havia lido há muito tempo, em que falava de um homem sozinho na multidão. Viu uma mulher andando com um cachorrinho. Ela estava rindo, de quê? - ele pensou. Ele coçou a cabeça tentando ajeitar o cabelo que estava comprido e todo bagunçado. Inconscientemente ele queria impressionar aquela menina. Não era a primeira vez que ele a via, ele já sabia da existência dela. Ele também imaginava que ela sabia da existência dele porque quando eles se cruzaram ela pareceu levar um susto. Os olhares se cruzaram rápido e os dois pareciam estar com o mesmo vazio existencial. Ficaram sem graça, olharam para os lados opostos, como se estivessem sozinhos, um do outro. Ele era alto, arrumou o andar, deu uma forte tragada no cigarro. Não quis olhar para trás, para ela. Pensou, quem sabe um dia eu não encontro com ela, a gente se conhece. Será que ela é legal como é bonita? - deu uma risada enquanto cossava a barba.
Cinco minutos depois ele já tinha esquecido aquele pensamento e aquele pequeno encontro. Apesar disso, o seu vazio tinha passado um pouco, como se houvesse uma esperança nova brilhando, dando energia para seguir. Tocava Nação Zumbi, No Olimpo, ele subiu no skate e decidiu voltar para casa, almoçar, ler um livro, encontrar com os amigos, parar de fumar, tomar um cerveja, arrumar uma namorada, fazer acontecer. Estava eufórico, ânsia de vida. Ele só pensava - Querem me calar, mais olha eu aqui de novo!

sexta-feira, 30 de abril de 2010

diário de algum momento

Eu não sei porque eu me acostumei com a morte. É estranho, ninguém deveria se acostumar com isso. Acho que em 1997 todo mundo que podia morrer na minha vida morreu, mesmo aqueles que estavam vivos. Deve ser por isso que não sei separar as coisas, o real do imaginário. Criei mil barreiras para não me ferir. Já perdi o meu herói, não quero sucumbir a outras perdas dessa intensidade, se é que elas existam. Meu segundo herói, me desencontrei dele, eu quero encontrá-lo. Novamente? Será que ele é? Ele é? nossa, isso é muito difícil de dizer, porque tudo é nada, e o ser humano tem a capacidade de criar no imaginário um universo de ideias que é inimaginável. Ele é? Não sei me separar de vivos, não aprendi isso. Porque eles estão sempre ali, então será que têm que se separar desses? Acho que o mais difícil nesse tempo contemporâneo é conseguir desvencilhar o mito da verdade absoluta. Absoluta, nossa que clichê! Mal estar da sociedade de massa. Eca, eu faço parte disso? Quem eu sou? onde estou? Não, não sou Alice! Sou Nice! Quem é Nice? Tanto faz? Pode ser, é tão indiferente. A gente surta e chora e cria e levanta e morre e nasce, tantas vezes, tantos ciclos, sempre iguais. Ahhhhhhhhhhhhh deixa eu gritar!!!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Meus botões

Eu acho que sou uma pessoa muito melancólica. Não me lembro bem da minha infância, mas acho que foi sempre assim. Não foi desde sempre que tive minha coleção de botões. Coloridos, velhos, achados, que caem das roupas. Sempre tive uma porção deles. Nunca consegui jogar fora algum. As vezes eu os pego e fico olhando, penso como são curiosos, misteriosos. Que história eles carregam?

Me recordo de um dia, quando tinha 6 anos. Foi o meu primeiro contato com a morte. Minha mãe me anunciou o falecimento da minha querida tia avó. Com certa frieza, achando que estava me ensinando, e de certo estava. Isso foi há muito tempo, já não sei de quê doença ela sofria, só sei que ela passou muito tempo doente. A titia tomava conta de mim, brincava comigo, fazia sopa para mim. A gente vivia rindo. Um dia ela não apareceu mais e minha mãe disse que ela estava doente. Depois de uns meses minha mãe disse que ia visitá-la, pedi que ela esperasse porque eu ia escrever uma carta. Foi minha primeira carta de despedida. Mesmo eu não sabendo ainda o que era morte. Depois de um tempo descobri que aquela visita seria a última de minha mãe à Titia. Tinha sido o seu enterro e minha carta seguiu em seu caixão.

No dia em que soube, não chorei, mas fiquei profundamente abalada. Descobrir que não irá mais ver alguém é uma coisa estranha. Minha irmã mais velha se comoveu comigo, tão jovem. Me levou para tomar um sundae, não é qualquer sorvete para uma criança, e me deu uma caixinha de música em forma de piano dourado com pássaros e flores desenhados. Fiquei feliz, vi que a vida continuava e passei a guardar ali os meus botões.

Não lembro ao certo o conteúdo da cartinha que seguiu com Titia, no entanto, creio que era uma profunda despedida. Será que eu já sabia que existia a morte? Será que está no instinto humano animal? Afinal, a gente nasce e em algum momento estranha esse fato, mesmo sendo uma estranheza extremamente inconsciente e passageira.

Não foi a última vez que escrevi cartas a mortos. Aliás, aquela só foi a primeira. Ao longo dos anos, escrevi tantas cartas, mas que nunca entreguei, que guardo e rezo para que tenham sido entregues por pensamento. Parece loucura? Porém, essa foi a forma que descobri de botar para fora meus sentimentos. Amantes, amigos, vivos e mortos. Ah, a saudade. Palavra nossa.

Meus botões, minhas cartas e minha melancolia. Coleções de uma história de vida. Essas coisas não me tornam em uma pessoa triste, muito pelo contrário. Ter saudade é bom, o triste é não tê-la, não ter o que lembrar e o que sentir falta. Amigos, amantes, família.

Quando mamãe morreu, me pediu uma carta. Disse que nunca esqueceu das palavras na carta ao meu falecido pai, que ela própria levou ao enterro e colocou no bolso do paletó dele. Me falou de como a carta fez bem a alma dela. "Eu te amo em qualquer lugar que você estiver. Mesmo você estando longe."


[em construção]